Problemas Socioambientais Urbanos na Amazônia (ouça o podcast)

Olá pessoal!

Meu nome é Sandoval Alves Rocha, sou padre jesuíta, sou cearense e trabalho na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, e ao mesmo tempo colaborado no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES. Estou participando aqui, alegremente, desta Semana Mundial do Meio Ambiente, e disponibilizo um texto que produzi para colaborar aqui nesta semana.

Problemas Socioambientais Urbanos na Amazônia

Embora a Amazônia possua uma história própria que guarda peculiaridades regionais, são notáveis os impactos dos processos de globalização na sua configuração contemporânea. Afinal, segundo Silva (2013), a Amazônia pode ser vista como uma formação econômico-social produzida pela dinâmica do capitalismo e, portanto, sujeita aos processos de expansão e crise do capitalismo. Sob esta perspectiva, pode-se dizer que os impactos da globalização na Amazônia se associam aos processos de domínio da natureza, de ocupação econômica, de fronteiras físicas e políticas, além de promoverem mudanças culturais, configurarem perspectivas de autodeterminação social e interlocução mundial.

A partir da década de 1970, o modo de produção capitalista adquire um novo impulso, apoiando-se nas inovações tecnológicas, na criação de novos produtos, na reconfiguração da divisão internacional do trabalho e na mundialização dos mercados (IANNI, 1996). Estimulada pela expansão da tecnologia da informação, este novo ciclo eleva ao primeiro plano os processos econômicos, empresariais e os mercados financeiros, marginalizando estruturas sociais, processos e movimentos sociais particulares. Os agentes mais dinâmicos da globalização são os conglomerados e empresas transnacionais que dominam a maior parte da produção, do comércio, da tecnologia e das finanças internacionais. O mercado, impulsionado por estes agentes, se torna a matriz estruturadora da vida social e política da humanidade (VIEIRA, 2013).

Com toda a sua beleza, grandeza e complexidade, a Amazônia é capturada por essas forças e tendências globais de forma subalternizada, sendo tomada como fronteira da expansão do capitalismo. Com a ajuda das elites locais, as tradicionais marcas das desigualdades sociais são aprofundadas e ampliadas, prejudicando ainda mais os povos indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, os pequenos agricultores e afetando a vida nos campos, nas florestas e nas cidades. Tudo na Amazônia tem dimensões extraordinárias (extensão territorial, florestas, biótica, água doce), incluindo as desigualdades sociais.

A lógica capitalista da produção e acumulação de riqueza determina a construção do espaço urbano, promovendo a segregação socioespacial e estabelecendo uma relação predatória com a natureza. Nesta perspectiva, as florestas e os rios são transformados em recursos a serem explorados, servindo como objetos de lucro. Desde o final do século XIX, o modelo de urbanização adotado em Manaus busca viabilizar a circulação da mercadoria, realizando uma grande transformação espacial da cidade através de aterros e desaterros nas áreas dos igarapés, promovendo a destruição da paisagem e do patrimônio natural, tornando-se um problema de saúde pública, uma vez que esses igarapés eram usados para o abastecimento das residências, banhos e lavagem de roupa. Este modelo de urbanização causou dentre outros danos, a proliferação de doenças, justificativa utilizada nos discursos para o aterro dos igarapés (VALLE e OLIVEIRA, 2003).

A lógica de acumulação capitalista se apropriou das cidades, transformando-as em lugares privilegiados de formação de riqueza, mas ao mesmo tempo espaços inegáveis de produção de pobreza. Essa realidade também foi percebida por Mike Davis (2006), frisando que na Amazônia, uma das fronteiras urbanas que crescem com mais velocidade em todo o mundo, 80% do crescimento das cidades tem-se dado nas favelas, onde faltam serviços públicos e transporte municipal.

As desigualdades sociais são percebidas nas cidades à medida que se nota, de um lado, os bairros onde moram as classes mais abastadas, espaços que recebem grandes investimentos do Estado, portadores de toda sorte de infraestruturas e serviços públicos de boa qualidade, e, de outro lado, os bairros localizados nas longínquas periferias, onde reside a maioria dos trabalhadores, sendo obrigados a sobreviverem com infraestruturas precárias e serviços coletivos deficitários, tais como transportes, saneamento básico, escolas e hospitais. Kowarick (2009) identifica as periferias como lugares privilegiados de acumulação capitalista, uma vez que graças a existência destes lugares, onde os trabalhadores encontram terras e moradias baratas, os empresários se eximem da responsabilidade de pagar salários dignos necessários para a reprodução da força de trabalho. Dessa forma, a precariedade de vida da maioria contribui para manter os lucros e os privilégios de uma minoria.

Enquanto as elites econômicas acumulam capital à custa do trabalho da maioria e investem fortemente nos mercados financeiro e imobiliário, os trabalhadores, desempregados e subempregados são obrigados a construir suas moradias nos lugares mais desvalorizados da cidade: periferias, igarapés, baixadas e encostas dos morros. Diante das políticas públicas excludentes implantadas pelo Estado, alijando a maioria da população do direito à moradia digna, os trabalhadores realizam ocupações e constroem suas moradias como podem nas franjas das cidades. Sem saneamento básico adequado, epidemias e pandemias, como a covid-19, e doenças de veiculação hídrica se alastram e os esgotos domésticos e industriais são lançados in natura nos rios e igarapés, comprometendo as águas e promovendo um prejuízo ambiental gigantesco.

Com a valoração econômica da natureza e o apoio do Estado, o empresariado avança sobre os recursos hídricos, se apropria dos sistemas de abastecimento de água, transformando um bem comum em mercadoria acessível somente àqueles que podem pagar. Deste modo, os segmentos mais pobres da sociedade aprofundam sua trajetória de exclusão, sendo-lhes negado um elemento essencial para a vida. Os princípios da cidadania, garantidores dos direitos na sociedade moderna, tornam-se privilégios de uma minoria, servindo aos interesses das elites, que controlam o Estado, os meios de comunicação e definem o modo de conceber a realidade. A cobertura de água potável em Manaus chega somente a 91,42% da população, enquanto o serviço de esgotamento sanitário abrange ínfimos 12,43% da cidade (SNIS/2018). Estes dados revelam o fracasso da concessão privada, iniciada no ano 2000, que projetava a universalizar do acesso a este bem fundamental.

A tarifa social, que possibilita aos mais pobres pagar menos pela água, evidencia a existência de uma “extorsão maquiada”, não somente pela demora da sua implantação, o que indica a forte resistência ao beneficio por parte da empresa, mas também por beneficiar somente 26 mil famílias, num universo de 130 mil que têm direito. A injustiça socioambiental se torna mais visível à medida que o preço cobrado pela água em Manaus constitui o 1º mais elevado da Amazônia e se encontra entre os mais elevados do Brasil. Não há outra explicação razoável para este fato, a não ser a ânsia pelo lucro, em sintonia com a lógica mundial do mercado financeiro nestes tempos de globalização.

Entretanto, as estratégias imperialistas que avançam sobre a Amazônia, sob a forma de um desenvolvimento predatório, estão em constante choque com o modelo de desenvolvimento socioambiental, que parte da articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Este prioriza a preservação ambiental e entra em sintonia com os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida. Tendo o extrativismo e a agricultura como suas principais atividades, este modelo é redistribuidor de renda, pois predomina a forma coletiva de uso da terra, como reservas extrativistas, terras indígenas, territórios quilombolas e projetos de desenvolvimento sustentável (JÚNIOR). Acesso universal à água limpa e floresta protegida são alguns dos elementos constituintes deste modelo sustentável de desenvolvimento.

O modelo de desenvolvimento socioambiental inspira a produção da cidade onde se valoriza os bens públicos e o patrimônio comum. Isso implica a vivência efetiva da democracia popular, em que o consenso é pautado pela busca da realização do direito à cidade, que segundo Lefebvre (2001), implica o direito à vida urbana, transformada e renovada. Este direito tem como seu principal protagonista a classe trabalhadora, que reúne os interesses de toda a sociedade e, inicialmente, de todos aqueles que sofrem a ação de uma cotidianidade marcada pela precariedade no trabalho, nas condições de habitabilidade e nos serviços públicos em geral.

Ouça o Podcast: 

Bibliografia:

BEZERRA, Eron. Amazônia, esse mundo à parte. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2010.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

IANNI, Octávio. A Era do Globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

JÚNIOR, Felício Pontes. Povos da Floresta. Cultura, Resistência e esperança. São Paulo: Paulinas, 2017.

KOWARICK, Lúcio. Escritos Urbanos. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2009.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2001.

SILVA, Marilene Corrêa. Metamorfoses da Amazônia. 2º Edição. Manaus: Valer Editora, 2013.

VALLE, Arthemisia de Sousa; OLIVEIRA, José Aldemir. A cidade de Manaus: análise da produção do espaço urbano a partir dos igarapés. In: OLIVEIRA, José Aldemir; ALECRIM, José Duarte; GASNIER, Thierry Ray Jehlen (Orgs.). Cidade de Manaus. Visões interdisciplinares. Manaus: EDUA, 2003.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 12ª Edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2013.