São Paulo – Pelo menos 800 famílias de 30 comunidades quilombolas, que residem no município de Alcântara, no Maranhão, sofrem ameaça de remoção por parte do governo de Jair Bolsonaro, em meio a pandemia de coronavírus no país – momento em que autoridades pedem a suspensão desse tipo de medida.
Nesta quinta-feira (26), o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) publicou, no Diário Oficial da União (DOU), a Resolução 11/2020, que estabelece diretrizes para a expulsão e reassentamento. A comunidade, apesar de ocupar há mais de três séculos o território, tem sua permanência ameaçada desde a assinatura do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST).
Aprovado no ano passado, o acordo prevê a cessão da base de lançamento de foguetes e satélites para os Estados Unidos. No entanto, até então o governo federal refutava a possibilidade de remoção das famílias, mas se contradisse na resolução assinada pelo general Augusto Heleno, chefe do GSI.
“Na verdade, a resolução impõe uma dupla vulnerabilidade aos quilombolas: o risco emergente de perder suas casas, vidas, e o risco de emergente de ser contaminado pelo coronavírus”, alerta o assessor jurídico das comunidades e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Especial de Alcântara (Mabe) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Danilo Serejo.
“Por parte dos órgãos do governo federal, estadual e municipal, não há nenhuma medida voltada especificamente para a proteção de defesa das comunidades indígenas e quilombolas na questão do coronavírus. Não tem medidas específicas para isso, tanto que a própria comunidade se mobiliza”, explica o assessor.
Outras 138 entidades da sociedade civil, entre as quais a Coalizão Negra por Direitos e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), também manifestaram, em nota publicada neste domingo (29), repúdio à ameaça de remoção dos quilombolas de Alcântara. De acordo com as organizações, assim como o AST, “que entrega o desenvolvimento de tecnologias nacionais”, a remoção dos povos tradicionais “fere a soberania do povo brasileiro”.
O que está em jogo
Para Serejo, trata-se de uma “decisão verticalizada”, feita “ao arrepio da legislação de proteção às comunidades como instituído pela Constituição e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”, que estabelece a necessidade de consulta prévia do órgão público às comunidades tradicionais e da qual o Brasil é signatário.
No documento, o governo, apesar de fazer referência à norma, dá como certa a remoção, designando inclusive a nove órgãos públicos providências quanto à mudança. Sem nenhum diálogo ou escuta da população local, fica determinado ao Comando da Aeronáutica o realojamento das famílias, além de um projeto de reassentamento e cadastramento pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre outras determinações.
Todo o plano, no entanto, sequer foi apresentado às comunidades ou aos seus representantes, e não há uma data para remoção ou quem e quantos serão os atingidos. “É uma medida extremamente racista porque só encontra paralelo na lógica colonialista, no Brasil Colônia. Isso revela o conteúdo racista desta portaria e deste governo, quando nos rouba o direito de decidir e planejar sobre o nosso futuro. Ninguém sabe quais são os planos. E nos preocupa muito porque a próprio Convenção 169 da OIT, além dela determinar que seja feita a consulta, ela também veta o deslocamento de comunidades”, ressalta o integrante do Mabe.
O governo Bolsonaro também confirma na resolução uma expansão em 12 mil hectares sobre o território. “Não são qualquer 12 mil hectares, essa é justamente a região mais estratégica em termos de soberania alimentar porque é o litoral do município. Essas comunidades saindo da região e ficando sob controle dos Estados Unidos, nós vamos instalar um quadro grave de insegurança alimentar”, adverte Serejo.
Outras violações
Ainda em choque pelo impacto da resolução, as entidades, contudo, já devem nos próximos dias acionar o governo federal na Justiça e o Ministério Público Federal, pedindo acesso aos planos de consulta e remanejamento. De acordo com o integrante do Mabe e do Conaq, as organizações estudam uma estratégia jurídica para barrar o cumprimento da decisão. “Mas do ponto de vista político, estamos denunciando essa situação de ameaça e expulsão dessas comunidades reconhecidas pelo estado brasileiro”, afirma Serejo.
Desde 2008, o território dos quilombolas de Alcântara possui Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) assinado pelo Incra, assegurando uma área de 78,1 mil hectares mas, até hoje, o processo de titulação não foi concluído. Já quando a base foi criada, na década de 1980, mais de 300 famílias foram desalojadas.
No mesmo ano do reconhecimento do território, o processo foi denunciado na OIT e novamente, no passado, a sociedade civil entrou com queixa contra o Brasil no órgão, diante da falta de consulta sobre o acordo com os Estados Unidos e da expansão prevista do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que é hoje de um total de 8 mil hectares. A reclamação foi admitida pela OIT e as entidades devem agora, como medida urgente, anexar a nova resolução do governo Bolsonaro à reclamação internacional.
A resolução foi deliberada pelo Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, que deve se reunir novamente no dia 20 de agosto.
“É inaceitável”
Em nota da Secretária de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, o governo do Maranhão se disse contrário ao posicionamento da União, apontando desrespeito aos direitos dos povos quilombolas.
“É inaceitável repetir equívocos do passado recente, em eventual novo remanejamento, quando sequer foram solucionados os passivos de implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA)”, diz o Executivo maranhense. “Instamos o Governo Federal a reconhecer e respeitar o direito das comunidades quilombolas ao seu território, investindo em tecnologias que permitam a convivência pacífica, colaborativa e contributiva entre os quilombolas e o Programa Aeroespacial Brasileiro.”