A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adotada em 10 de dezembro de 1948. Para marcar o aniversário de 70 anos, nas próximas semanas, o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) publicará textos informativos sobre cada um de seus artigos.
A série tentará mostrar aonde chegamos, até onde devemos ir e o que fazer para honrar aqueles que ajudaram a dar vida a tais aspirações.
Leia mais sobre o Artigo 12: Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Escolas devem usar câmeras nas salas de aula para monitorar as crianças e saber se elas estão prestando atenção? Você usaria WiFi aberto em um quiosque se soubesse que as câmeras e sensores do estabelecimento coletarão dados sobre você, e que você continuará sendo monitorando mesmo depois de deixar o local? Se você usar um relógio inteligente, como se sentiria caso uma seguradora lhe negasse cobertura com base nos dados coletados pelo aparelho?
Estes não são fragmentos de um pesadelo distópico, mas questões muito reais da nossa era digital, que não poderiam ter sido previstas em 1948 pelos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Ainda assim, o conceito de privacidade, consagrado no Artigo 12, tem se tornado cada vez mais central em nossas vidas ao longo dos últimos 70 anos, com o aumento do recolhimento de dados por parte de governos e empresas.
A privacidade é frequentemente considerada como uma “porta de entrada” que reforça outros direitos, online e offline, incluindo o direito à igualdade e não discriminação, e liberdade de expressão e de reunião.
No entanto, a privacidade também é um valor em si, essencial para o desenvolvimento da personalidade e para a proteção da dignidade humana, um dos principais temas da DUDH. Permite nossa proteção contra interferências não autorizadas em nossas vidas e determinar como queremos interagir com o mundo. A privacidade nos ajuda a estabelecer fronteiras para limitar quem tem acesso aos nossos corpos, lugares e coisas, assim como nossas comunicações e nossas informações.
A privacidade não é um direito absoluto, e pode ser limitada em alguns casos, como no caso de autoridades prisionais que vasculham celas em busca de contrabando. No entanto, violações da privacidade precisam ser proporcionais ao benefício à sociedade. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, por exemplo, decidiu em 2000 que não era “necessário em uma sociedade democrática” a manutenção de um dossiê contra um cidadão romeno, elaborado pelo serviço secreto, com informações (algumas falsas) de mais de 60 anos atrás.
A privacidade, especialmente a digital, pode ser vista como um conceito abstrato. Com o aumento das preocupações com terrorismo nos últimos anos, governos buscaram se intrometer ainda mais na privacidade dos cidadãos, citando a segurança nacional como motivação. “Se você não tem nada a esconder”, de acordo com o argumento, “por que está preocupado?”.
Talvez o valor da privacidade possa ser entendido de maneira mais fácil no mundo físico. Imagine que alguém entrou na sua casa e não levou nada, mas bisbilhotou suas gavetas e leu suas cartas. Tal invasão faria com que a maior parte de nós ficasse no mínimo desconfortável. Algo muito similar está acontecendo hoje, com cidades repletas de câmeras de monitoramento, empresas vendendo informações sobre seu histórico de busca online e vigilância governamental sobre indivíduos.
Às vezes, escolhemos abrir mão de alguns aspectos de nossa privacidade. Sempre que compramos algo online ou usamos um serviço grátis de WiFi abandonamos certa privacidade em troca de algo de valor.
No entanto, os indivíduos não estão sempre cientes do que estão abandonando, ou para quem. Podem não saber que, quando você ganha algo de graça no mundo digital, você não é o cliente, mas o produto. Em 2018, cerca de 87 milhões de usuários do Facebook descobriram ter sido transformados em commodities – sem seu conhecimento ou permissão – quando seus hábitos de busca, compras, opiniões políticas e redes de amigos foram analisados e vendidos para obtenção de lucro.
Defensores da privacidade também estão preocupados com o fato de que muitos usos de tecnologias, apresentados como vantagens, podem ter um lado obscuro. Algumas seguradoras dão descontos para clientes que utilizarem aparelhos de monitoramento para provar hábitos de vida saudável. Falta muito para que passem a negar cobertura de seguro para aqueles que se recusarem a usar pulseiras “inteligentes”? Você pode ficar contente ao usar reconhecimento facial como atalho para sua conta bancária. Mas e se o seu rosto se tornar parte de um grande esquema de vigilância governamental, que pode te monitorar em qualquer lugar?
Grandes bancos de dados agora possuem informações – histórico de busca, localização e dados financeiros e de saúde – sobre cada mulher, homem e criança em certas partes do mundo. Isso não significa “apenas aqueles que podem ser considerados críticos ou ativistas, ou apenas os usuários de Internet, mas pura e simplesmente todo mundo”, disse a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet.
A extensão da intrusão governamental global veio à tona em 2013, quando o ex-administrador de sistemas da CIA, a agência de inteligência norte-americana, Edward Snowden vazou informações confidenciais sobre a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. De acordo com os vazamentos, cerca de 90% das pessoas que tiveram comunicações interceptadas não eram alvos intencionais, mas pessoas comuns. Isso tem grandes consequências, à medida que coletar e ligar muitos tipos de informações sobre indivíduos pode ser uma forma de determinar seus “valores sociais” para premiá-los ou colocá-los em listas negras.
“Governos em todas as regiões também estão usando ferramentas de vigilância digital para monitorar e mirar defensores dos direitos humanos e indivíduos vistos como críticos – incluindo advogados, jornalistas, ativistas sobre direitos da terra ou do meio ambiente, e pessoas que apoiam igualdade para membros da comunidade LGBTI”, disse Michelle Bachelet, alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em novembro de 2018.
No mundo todo, pessoas estão lutando para preservar a privacidade. A pressão pública fez com que muitas empresas aumentassem a segurança digital e oferecessem serviços de comunicação completamente criptografados para seus clientes. Alguns governos estão adotando meios legais de proteger indivíduos contra intrusões de Estados e empresas. Projetos inovadores, como a construção de um bairro “inteligente” em Toronto, estão enfrentando crescente escrutínio por suas práticas de gestão de dados. “Eu imaginava criar uma cidade inteligente da privacidade, oposta a uma cidade inteligente da vigilância”, escreveu Ann Cavoukian, especialista canadense em privacidade, ao deixar o projeto.
Setenta anos depois, a DUDH fornece um panorama claro para assegurar a dignidade e os direitos de todas as pessoas, até mesmo em uma era digital que não poderia ter sido prevista pelos redatores da Declaração. Michelle Bachelet diz que advogados de direitos humanos, cientistas da computação e engenheiros, assim como representantes governamentais, precisam trabalhar juntos “para garantir a contínua aplicação dos direitos humanos na forma com a qual os Estados operam na era digital, de forma a regular as atividades de empresas no espaço digital”.