DIÁLOGOS DE JUSTIÇA E PAZ: Defender a natureza para salvaguardar o planeta

Seguindo a tradição de se realizar nas primeiras segundas-feiras de cada mês, a última edição do Diálogos de Justiça e Paz aconteceu no dia 3 de junho de 2024, às 19h, no auditório do Centro Cultural de Brasília. Desta feita, o evento dedicou-se a dialogar sobre as estratégias aplicadas no sentido de “defender a natureza para salvaguardar o planeta”, aproveitando a proximidade com o Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado no último dia 5 de junho. O tema insere-se dentro do atual contexto de emergência climática percebida em eventos extremos ao redor do mundo, de modo especial, os desafios enfrentados pelas famílias nas enchentes do Rio Grande do Sul. Além disso, representou o esforço de colaborar com as reflexões pertinentes ao Cuidado da Casa Comum e com o combate às mudanças climáticas, no âmbito da Semana Laudato Si’ de 2024.

Para refletir sobre tudo isso, o Diálogos buscou contemplar as visões acadêmica e política sobre o tema. Nesse sentido, recebeu a Dra. Mariza Rios, da Escola Superior de Direito Dom Helder Câmara (MG) e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direitos da Natureza e Racionalidade Ambiental para uma Educação Ecológica Integral (CNPq); bem como o Deputado Federal Nilton Tatto (PT-SP), Vice-Líder do Governo na Câmara dos Deputados e Coordenador da Frente Ambientalista Mista no Congresso Nacional. Para a mediação, contou com participação de Ana Paula Inglêz Barbalho, advogada e Presidente da Comissão de Justiça e Paz de Brasília.

O evento, gratuito e presencial, foi transmitido pelos canais do Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), da Comissão de Justiça e Paz do Distrito Federal e da Comissão Brasileira de Justiça e Paz no YouTube. A iniciativa incluiu também a nova parceria com o Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana (COPAJU), instituído recentemente pelo Papa Francisco.

Ana Paula iniciou o encontro lembrando que, em 2023, o Brasil teve 745.000 migrantes forçados em decorrência de eventos extremos relacionados ao clima, fato que remete a questões como a da justiça climática, racismo climático, ocupação desordenada de territórios e outras.

Mariza Rios, participando remotamente, trouxe a lembrança de colegas que, a partir da década de 30, criaram iniciativas importantes em prol da defesa da natureza. Citou primeiro Aldo Leopold (1887-1948), pensador e filósofo norte-americano que, nos anos 30, lançou a ideia de se criar um novo código de ética de convivência com a Terra, que ele chamou de Ética da Terra. Além dele, o filósofo Leonardo Boff escreveu vários livros sobre a necessidade de se reaprender a conviver com a Terra, em especial, o que questiona a ideia vigente de sustentabilidade e propõe uma nova discussão a esse respeito. O terceiro pensador citado foi o suíço Ernst Götsch, o autointitulado “cuidador de pomar”, que há quase 50 anos se mudou para o Brasil, onde desenvolve um trabalho com a agricultura sintrópica, defendendo a ideia de que o solo oferece as respostas para a sua própria sobrevivência. Nesse contexto, insere-se também o fotógrafo Sebastião Salgado e seu projeto de recuperação das nascentes do Rio Doce.

Lembrou, também, o chamado Clube de Roma, que, a partir de 1968, lançou a reflexão sobre o futuro da humanidade, que desembocou na criação do Direito Ambiental pela ONU e, especificamente no Brasil, na instituição de uma Secretaria Especial para o Meio Ambiente, em 1973. Finalmente, em 1981, chegou-se à primeira lei no campo de políticas públicas ambientais, que foi a Política Nacional do Meio Ambiente, e à Constituição Federal de 1988, que instituiu, em seu art. 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Segue-se a criação do IBAMA, em 1989; do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, em 2000; do Estatuto da Cidade, em 2001.

Todavia, mesmo com essas iniciativas, Mariza Rios afirma que ainda não conseguimos avançar na questão da patrimonialização do meio ambiente e, como prova disso, citou quatro artigos da Constituição que permanecem no papel do ponto de vista tanto acadêmico quanto legislativo e executivo. O primeiro deles foi o artigo 1º, que estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Segue-se o artigo 3º, que determina, como objetivos fundamentais, que se construa uma sociedade livre, justa e sólida, se garanta o desenvolvimento nacional, erradique a pobreza e a marginalização, reduza as desigualdades sociais e regionais e promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade. O artigo 170, que trata da ordem econômica, estabelece que o objetivo deve ser a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, a garantia da justiça social e da existência digna para todos e a observância de princípios, dentre os quais, a defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades. Finalmente, o artigo 225, que reconhece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Segundo Mariza Rios, esse arcabouço cria disputas nas esferas acadêmica, legislativa, administrativa e judiciária. Na academia, acontece a disputa epistemológica no que se refere aos conceitos de meio ambiente, colonização e descolonização dentro do direito ambiental, bem-estar de todos, existência de outros saberes e tradicionalidade. No âmbito administrativo, existe a disputa da governança da política pública entre União, Estados e municípios. Citou o exemplo da judicialização de um contrato entre uma empresa mineradora no município de Serro, em Belo Horizonte, por descumprimento do princípio da tradicionalidade. Lembrou, também, o caso em que a Câmara de Vereadores de Cáceres reconheceu os direitos da natureza para em seguida voltar atrás e revogar a própria decisão em desfavor da demanda da sociedade civil organizada.

Finalmente, salientou que o grande desafio da academia hoje é voltar à tradicionalidade, reler a hermenêutica constitucional e rever conceitos como o da sustentabilidade. Ao Legislativo cabe apresentar uma proposta que faça a conexão entre os quatros artigos constitucionais citados. Os movimentos sociais e as comunidades tradicionais estão fazendo o seu trabalho.

Nilto Tatto agradeceu às entidades responsáveis pelo Diálogos, pois, de alguma forma, elas participaram de sua trajetória política. Foi por meio da Igreja e das Comunidades Eclesiais de Base que ele começou sua militância popular nas periferias nos anos 70. Manifestou sua solidariedade aos seus conterrâneos do Rio Grande do Sul e louvou a mobilização nacional em socorro às famílias atingidas. Lembrou seu engajamento na construção do Brasil nos últimos 40 anos, inclusive na Assembleia Nacional Constituinte, na organização de evento paralelo da Eco-92 e na criação da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, juntamente com Ailton Krenak e o cacique Raoni e no âmbito do CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação.

Elogiou o Código Florestal, entre outros motivos, por garantir o direito da sociedade em ter um percentual das propriedades particulares nos biomas, em áreas de preservação permanente. Mas a população que se encontra na base da pirâmide social brasileira, principalmente de negros, indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais, ficou à margem do desenvolvimento econômico ao longo dos últimos 500 anos de nossa história e é a que mais sofre em decorrência dos eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas. O enfrentamento da crise climática pressupõe a redução da enorme desigualdade social e a inclusão desse grande contingente da população que ficou marginalizado.

Finalmente, manifestou sua preocupação com a atual formação da base do Governo no Congresso Nacional, base essa que inclui parlamentares que ajudaram a elegê-lo, mas que defendiam a agenda do Governo anterior, então comprometida com a desconstrução socioambiental e com o próprio crime. Hoje eles estão derrubando os vetos do Presidente da República em questões como, por exemplo, o Marco Temporal.

Ana Paula lembrou uma frase do Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’: “Quando falamos de meio ambiente, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida”.

Louvou a participação da sociedade civil organizada na Conferência Rio-92, num momento em que havia um consenso mundial de que algo precisava ser feito em termos ambientais, mas quando não se dispunha das facilidades tecnológicas de hoje. Ali se pretendeu construir novos caminhos, não para adiar o fim do mundo, mas para regenerá-lo.

Seguiram-se as manifestações dos presentes e dos participantes remotos.

José Geraldo de Souza Jr., ex-reitor da UnB e integrante da Comissão de Justiça e Paz do DF, reforçou a lembrança da rede de mobilização da Igreja no processo constituinte, no âmbito do que ela chamou de alavancas de transformação social para promoção dos princípios democráticos participativos.

Chico Nazaré, do Movimento Popular Socialista, também se manifestou.

Luiz Felipe Lacerda, Secretário Executivo do OLMA e Coordenador da Cátedra Laudato Si’ da UNICAP, agradeceu a participação da Dra. Mariza Rios e do Deputado Nilto Tatto. Comentou que o OLMA compõe, junto com o CIMI, a CPT e a Cáritas, a articulação nacional pelos direitos da natureza e anunciou a realização, no dia seguinte, de audiência pública na Câmara dos Deputados para propor a PEC dos Direitos da Natureza, junto com a Frente Parlamentar Ambientalista e a Bancada do Cocar. A proposta está articulada com todas as instituições, dentre elas muitas pastorais sociais, e traz as várias perspectivas que a Professora Mariza Rias apresentou. Precisamos de 177 assinaturas para ela começar a tramitar, e o Deputado Nilto Tatto vai ajudar nisso. Estarão presentes as lideranças indígenas do Noroeste, da Cáritas de Minas Gerais e vários lugares que já aprovaram os direitos da natureza nas legislações municipais. Esse debate está acontecendo dentro de uma articulação nacional ligada a uma congregação latino-americana, que, inclusive, tem um braço dentro da ONU, num programa chamado Harmonia com a Natureza. De lá para cá, há sempre obstáculos na construção de uma proposta viável de economia que respeite os direitos da natureza. Pensava-se que, em alguns caminhos, as energias chamadas renováveis seriam essa estratégia, mas hoje se vê

que o renovável está sendo apropriado e envelopado num modo antigo de se fazer as coisas, sem falar dos vários problemas do mercado de carbono, inclusive na Amazônia. E agora está chegando a moda do nitrogênio verde. As comunidades estão denunciando as apropriações e a d

errubada de direitos territoriais. Estamos buscando pistas para construir propostas de uma economia que realmente se construa a partir dessa relação mais respeitosa com a natureza, o que não tem sido fácil. E uma economia que reduza as desigualdades sociais. Papa Francisco disse que não há duas crises distintas: é uma mesma crise. Trabalhar na crise ambiental é trabalhar também na crise social. Luiz Felipe pediu aos palestrantes que se manifestassem sobre esse tema e também sobre a COP-30, de 2025. Os movimentos sociais estão desesperançosos em relação a esses espaços globais depois de 30 anos de COPs.

Mariza Rios relembrou uma lição que aprendeu em sua convivência com o Professor José Geraldo durante o seu mestrado na UnB: é preciso termos sempre um lugar para tomar água e reabastecer a nossa existência. Foi na universidade que ela aprendeu as estratégias da luta pela vida, que são o foco necessário para se pensar qualquer reforma legislativa. Mas uma mudança legislativa por si só não garante os direitos da natureza. Lutar pela incorporação dos direitos da natureza no espaço constitucional num parlamento em que a grande maioria não os reconhece requer uma mudança de comportamento para fortalecer o movimento social e a tradicionalidade. Isso precisa ser reafirmado na audiência pública sobre a PEC dos Direitos da Natureza. Ela faz esse aprendizado nos movimentos sociais e o leva para a academia. Hoje lidera um grupo de pesquisa na Escola Superior Dom Hélder Câmara, da qual Luiz Felipe faz parte. Quando se abriram as vagas para a composição do grupo, mestrandos e doutorandos as esgotaram em vinte minutos. Ela tem testemunhado, com alegria, esse interesse em outras academias. O parar para tomar água se refere à tradicionalidade, à experiência comunitária dos povos e comunidades tradicionais e ribeirinhas.

Nilto Tatto falou do perfil dos parlamentares, muitos dos quais defendem interesses de corporações que colocam em risco a vida do planeta. A resposta é defender as pautas que constroem a cidadania. Enfatizou que não há como enfrentar a crise climática com as desigualdades sociais produzidas pelo capitalismo. Em contraponto, a economia ecológica valoriza o cooperativismo e a solidariedade. Historicamente, a vida do povo brasileiro teve avanços, apesar dos percalços. Hoje estamos celebrando que conseguimos 10% para a agricultura familiar, enquanto 90% foram para o agronegócio, mas temos que inverter essa proporção. Mesmo com todos os desafios, a PEC dos Direitos da Natureza vai mobilizar, formar e agregar.

Guilherme Delgado, do IPEA, louvor a iniciativa da PEC dos Direitos da Natureza, mas alertou para a longa tramitação legislativa dessas matérias, e a questão ecológica não pode esperar. Há outras iniciativas, que dependem de decretos, que já podem ser tomadas e que vão incidir imediatamente na realidade no campo das políticas agrícola e fundiária. O Plano Safra deverá sair em julho próximo. O anterior dedicou 240 bilhões para o agronegócio devastar o país. Se o atual não for reformulado pelo menos numa perspectiva de transição ecológica imediata, vai piorar a situação. Além disso, o paradigma teórico da economia ecológica já existe há 50 anos, mas o que está em prática não tem nada a ver com a dos fundadores. Felizmente, existe uma sociedade brasileira de economia ecológica e internacional que segue critérios teóricos minimamente.

Roberto, da Economia de Francisco e Clara, lembrou sua experiência no grupo de resistência à ditadura e falou da sua tristeza em assistir aos avanços do fundamentalismo da extrema direita.

Ana Paula encerrou o evento, expressando sua alegria em ouvir falar sobre resistência e vontade de transformação, pois elas nos dão a esperança de um mundo novo.