Lideranças indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, organizações indigenistas, ambientais e de direitos humanos estiveram na Audiência Pública Temática da Comissão Externa de Queimadas em Biomas Brasileiros, no Anexo II da Câmara Federal. O evento foi realizado na tarde dessa quinta-feira (19) de forma híbrida, por videoconferência e presencial, com o tema “Queimadas em Biomas Brasileiros”.
Com objetivo de ouvir as comunidades e promover ações diante do grave cenário socioambiental provocado pelos incêndios e o intenso desmatamento nos referidos biomas, participaram do evento a Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras (Mato Grosso do Sul), uma liderança da Comunidade Barra de São Lourenço (Mato Grosso do Sul), uma liderança Indígena do povo Krahô (Tocantins), uma liderança da Comunidade Quilombola Cocalinho (Maranhão), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Na oportunidade, também foi apresentado um parecer técnico, elaborado em parceria com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), pautado nos casos apresentados no DOSSIÊ AGRO É FOGO. A Comissão Externa de Queimadas em Biomas Brasileiros é coordenada pela deputada federal Professora Rosa Neide (PT/MT).
A presença na capital federal é para reivindicar os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como trazer a realidade dessas comunidades ao parlamento brasileiro. “Todas as comunidades têm dito, nós precisamos nos reunir para defender nossos territórios, tivemos que nos reunir para combater o fogo, para proteger os territórios”, destacou Isolete Wichinieski, da CPT.
“Nós precisamos nos reunir para defender nossos territórios”
Isso, porque “existem sobreposições de violências quando se trata de conflitos e incêndios. Isso violenta os povos e comunidades tradicionais que lutam para garantir a sua permanência. É preciso investigar esses atos criminosos e não criminalizar as comunidades”, listou a representante da Comissão Pastoral da Terra. Isolete ainda trouxe à Comissão uma série de dados sobre conflitos relacionados ao fogo.
“Os conflitos existem não só pela violência, mas porque as comunidades se colocam na defesa dos seus territórios. Ao invés de punir os responsáveis pelos incêndios criminosos, as comunidades têm sido criminalizadas e penalizadas”, completa Isolete.
“Ao invés de punir os responsáveis pelos incêndios criminosos, as comunidades têm sido criminalizadas”
Cláudia Pinho, representante da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, destacou a presença dos povos nesses territórios invadidos e incendiados criminalmente.
“Um jeito de proteger é reconhecer que ali existe gente, nós não destruímos nossa casa, nós a preservamos. É preciso que haja olhares diferenciados ao território. Queremos um olhar diferenciado para o Pantanal, falar da maior área alagada do mundo é muito bonito, agora é preciso preservar, é preciso reconhecer que nele vivem gente, pessoas que estão no dia a dia se dedicando a preservar o território pantaneiro”, assegura Cláudia Pinho. “O Pantanal sempre foi ocupado por povos indígenas e territórios tradicionais, por isso, um dos meios de proteger, é reconhecer os direitos desses povos”, completou.
O alerta para o uso criminoso do fogo ganhou destaque no depoimento de cada uma das lideranças presentes na audiência. “Não podemos chamar de queimadas, mas de incêndios criminosos. [O Pantanal] é um dos biomas mais frágeis, mas também está entre os mais ricos em biodiversidade. É um bioma que sofre a pressão do agronegócio e do hidronegócio”, destacou Claudia Pinho.
“[O Pantanal] é um bioma que sofre a pressão do agronegócio e do hidronegócio”
O fogo é um elemento da cultura e da tradição dos povos indígenas, das comunidades pantaneiras e quilombolas. No entanto, “o fogo causa destruição quando usado para devastar e, nesse período de frio, ele serve para nos aquecer, temos de saber como conduzir o fogo. Posso dizer que, para os Krahô e os demais povos indígenas, o fogo tem sido muito ruim para nós. Quando o fogo entra nas aldeias, é por maldade do “cupen” [não índio] que taca fogo em uma determinada área e invade aquele território indígena”, contou Davi Krahô à Comissão, liderança do povo Krahô no Tocantins.
O problema dos incêndios causados por grileiros e invasores tem se intensificado nos últimos anos, especialmente, no Cerrado, Amazônia e Pantanal, o que reflete um negócio milionário. Enquanto isso, “temos visto o governo brasileiro dizer que o fogo foi causado pelos indígenas na Amazônia, mas se a gente for analisar não foi bem assim, nós temos as brigadas indígenas nos territórios para combater os incêndios criminosos”, desmente a liderança Krahô.
Para a liderança da Comunidade Pantaneira Barra de São Lourenço, no Mato Grosso do Sul, Leonida Aires, o fogo tem sido usado de má fé, para destruir e invadir, sem pensar na vida. “Eles [os incendiários] são um bando de zumbis, porque não têm a capacidade de pensar, só pensam em dinheiro. Quando se incendeia a natureza, estão matando a vida, o futuro. Até hoje nós temos o resultado dessa chuva de cinzas, até hoje a comunidade tem problemas de saúde”.
“Eles [os incendiários] são um bando de zumbis, porque não têm a capacidade de pensar, só pensam em dinheiro”
Para os povos e comunidade tradicionais, os incêndios criminosos estão relacionados aos conflitos no campoe ao avanço do agronegócio nos territórios tradicionais. “Não é só o fogo que traz esses grandes impactos, mas, por trás de tudo isso, estão a grilagem, o desmatamento, a pulverização aérea.Por conta disso, a nossa sociobiodiversidade está acabando aos poucos, não temos mais paz, por isso os modos de vidas das comunidades quilombolas estão em risco”, conta Leandro dos Santos, liderança da Comunidade Quilombola de Cocalinho, no Maranhão.
“O agronegócio tem avançando nos territórios, hoje estamos cercados por grandes projetos de monocultura, e esses projetos atingem diretamente nós”, conta Davi.
“Estamos presenciando indígenas morrendo por doenças crônicas, porque o agrotóxico está demais e atinge nossas comunidades, nossos rios, inclusive, agrotóxicos esses que já foram banidos em outros países, mas que o Brasil segue usando. A gente sabe que sem água não vivemos, mas sem soja vivemos”, completou a liderança Krahô.
“Estamos presenciando indígenas morrendo por doenças crônicas, porque o agrotóxico está demais e atinge nossas comunidades”
A não demarcação dos territórios tradicionais tem sido um dos principais fatos do aumento das invasões, desmatamento, incêndio e grilagem, o que também coloca em risco a vida dos povos indígenas em isolamento voluntário, ou de recente contato, como na ilha do Bananal, no Tocantins.
Segundo a liderança Krahô, “o governo brasileiro não dá valor a um território indígena, ele quer invadir, aprovar a mineração. Quer que faça queimadas para destruir a natureza, para produzir pastagem para criar gado [boi]”, conclui.
Congresso anti-indígena e marco temporal
Entre as denúncias realizadas na audiência pelas lideranças e organizações sociais, está o conjunto de medidas, decretos e projetos de lei que estão em trâmite no Congresso Nacional e que afetam diretamente os modos de vida dos povos indígenas e das populações tradicionais.
“Existe uma programação de ataque aos direitos indígenas e também aos direitos dos povos tradicionais. Existe uma programação constituída, principalmente pelos governantes desse país com projetos de lei (PLs) que atacam e ferem a Constituição Federal de 1988”, aponta Eliane Martins, do Cimi Regional Goiás-Tocantins (Cimi – GO/TO) durante Audiência.
“Existe uma programação constituída, principalmente pelos governantes desse país com projetos de lei (PLs) que atacam e ferem a Constituição Federal de 1988”
Na lista, estão os Projetos de Lei (PL) 191/2020, que libera essa prática e outras atividades, como agronegócio e grandes obras de infraestrutura, nas terras indígenas de todo o país. E o PL 490/2007, que abrange diversos pontos considerados um retrocesso para as populações indígenas, e busca instituir o marco temporal via legislativo, inviabilizar as demarcações de terras indígenas e regularizar a mineração nos territórios tradicionais.
Porém “o marco temporal fere a Constituição Federal de 1988, fere o direito originário dos povos indígenas, porque ele limita a demarcação das terras indígenas. Essa tese do marco temporal é inconstitucional”, afirma a representante do Cimi. Para os indígenas, o marco temporal contribui para o “processo de extermínio dos povos indígenas”.
“O marco temporal fere a Constituição Federal de 1988, fere o direito originário dos povos indígenas, porque ele limita a demarcação das terras indígenas”
O marco temporal é uma tese defendida por conglomerados interessados na exploração dos territórios indígenas, especialmente o agronegócio e hidronegócio. Nessa tese, os povos originários só teriam direito às suas terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, dia da Promulgação da Constituição, desconsiderando todo histórico de esbulhos, violências e violações enfrentadas pelos indígenas.
A tese do marco temporal encontra-se em análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com previsão de retomada do julgamento para o dia 23 de junho deste ano. O STF voltará a julgar o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que tem sua repercussão geral reconhecida pela Corte, isso significa que a decisão tomada nesse julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.
Em 2021, quando a Corte deu início ao julgamento, adiou e novamente tornou a analisar o marco temporal, indígenas de todas as regiões do país realizaram meses de intensas mobilizações em Brasília e nos territórios, assim como fizeram durante a Constituinte. Para o mês de junho, as organizações indígenas e de apoio à causa indígena, asseguram que estarão novamente na capital federal para acompanhar o julgamento, bem como mobilizados nos territórios.
“A gente espera que toda essa Comissão, a qual a deputada Rosaneide faz parte, também consiga se articular com outras Comissões, com outros deputados a fazer frente, como resistência a esses projetos de lei que vêm violentando a vida dos povos e das comunidades tradicionais. E que, no dia 23 de junho, que tenha a demarcação já, que o marco temporal não seja aprovado nem siga a diante, porque a vida de todos os povos está em jogo e contamos com vocês para essa luta, contra o marco temporal”, conclui Bárbara Dias, da Articulação “Agro é Fogo”.