Marcivana, do povo Sateré-Mawe, foi auditora no Sínodo da Amazônia (Vatican Media)
Marcivana Sateré-Mawé, da coordenação do Copime, fala sobre protagonismo da mulher indígena
O feminismo é um dos temas candentes da atualidade. Alguns estudiosos têm enfatizado, inclusive, que a luta das mulheres não é homogênea, uma vez que outros aspectos sociais são determinantes em sua luta por direitos. Assim, fala-se algumas vezes da singularidade do feminismo negro. Contudo, o que falar da mulher indígena?
Marcivana Sateré-Mawé, que faz parte da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime) e uma das auditoras do Sínodo para Amazônia, que aconteceu em Roma, fala sobre a perspectiva indígena do feminino. Ela destaca o papel das mulheres indígenas na preservação cultural e territorial de seus povos. “Ela já não está mais como animadora ou motivadora, mas ela própria está na linha de frente em defesa dos territórios”, destaca.
Segundo Marcivana, as mulheres indígenas assumiram o protagonismo político e são hoje uma grande força de resistência contra os retrocessos sociais e os ataques aos direitos dos povos tradicionais. Entretanto, ela admite que a discussão dos direitos da mulher indígena “é uma questão que a gente ainda tem muito que avançar” mesmo dentro do movimento indígena.
Em entrevista ao Dom Total, ela fala sobre violência contra a mulher indígena, sobre a influência da cultura branca sobre a índia, a respeito de parto e puerpério e o que outras culturas podem aprender com a perspectiva indígena. Marcivana também é uma das palestrantes da 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), promovida por instituições jesuítas e que tem grande parte das atividades concentradas na Dom Helder Escola de Direito, parceira do evento.
Penso que a principal pauta das mulheres indígenas, desde o processo de ocupação do Brasil, tem sido a defesa dos territórios. Historicamente, a presença das mulheres indígenas tem sido muito marcante. Até hoje essa tem sido a principal pauta, principalmente nesses tempos em que temos vivenciado muitos processos retroativos, muito ataque aos direitos conquistados. Mais do que nunca, a mulher indígena tem se colocado na luta em defesa dos territórios amazônicos. Primeiro por que, sem território, não tem como a gente ter cultura, não tem como você repassar às gerações futuras a cultura dos nossos povos. A mulher indígena, então, tem um papel muito importante. Se antes, no início do processo de colonização, era ela quem falava, quem motivava as lideranças passadas a irem para a luta, hoje a própria mulher indígena tem uma presença marcante nessa luta. Ela já não está mais como animadora ou motivadora, mas ela própria está na linha de frente em defesa dos territórios.
Na minha cultura, Sateré-Mawé, desde a criação do meu povo, a mulher tem um papel muito importante. No início era a mulher que tinha, digamos assim, o poder da vida ou da morte, porque era ela quem detinha os conhecimentos tradicionais das plantas medicinais. Era ela quem curava toda doença. Mas nem toda cultura é igual. Na minha cultura Sateré-Mawé, a mulher tem papel muito marcante. As lideranças, as tuxauas, são mulheres de irem muito a luta.
Hoje, a mulher tem alcançado um grande espaço dentro do movimento indígena. Temos mulheres à frente de grandes organizações indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com a Soninha Guajajara; a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), com a Nara Baré; eu, que estou na coordenação da Copime como única mulher, com três homens. A mulher tem alcançado um status de muito respeito dentro do movimento indígena. Ela tem articulado grandes ações a nível nacional, principalmente nesse tempo. Esse tempo de retrocesso dá muito mais visibilidade às mulheres, porque são elas que estão à frente da luta por direitos em defesa da mãe terra. Acredito que essa luta por direitos e contra os retrocessos nos direitos adquiridos seja outra importante pauta que as mulheres têm defendido nesses últimos anos.
A mulher indígena não defende apenas seus direitos como mulher. Ela se posiciona muito na defesa dos direitos coletivos, no direito por igualdade de todos e todas. Ainda é pouco discutido, mesmo dentro do movimento indígena, a questão dos direitos da mulher indígena. Na verdade, a mulher está construindo esse direito. Ela está junto ao movimento, ao lado dos guerreiros, na defesa dos direitos coletivos. É uma questão que a gente ainda tem muito que avançar em relação aos direitos da mulher indígena. Mas a gente tem algumas organizações, por exemplo, aqui em Manaus, onde as mulheres que vieram da base, das aldeias, pra trabalhar em casas de família, passaram a se organizar na cidade. Havia muita dificuldade de trabalhar fora quando elas tiveram os filhos. Aí, não tinha como ela ir trabalhar e deixar a criança. Para a mulher indígena, isso é bem complicado, uma vez que que a criança está sempre junto da mãe. Diante desse problema, elas começaram a se organizar, criaram as associações de mulheres aqui na cidade de Manaus, onde elas produzem artesanato para vender sem precisar ficar longe dos filhos, das crianças. Isso tem sido um dos principais complementos de renda das famílias indígenas aqui na cidade de Manaus. Esse foi um dos caminhos que as mulheres indígenas encontraram.
Aqui na Amazônia, as lutas são comuns para as mulheres amazônidas. Não é uma luta diferente, por exemplo, das mulheres camponesas ou da luta que foi de irmã Dorothy (Stang). É a mesma luta. É uma luta coletiva, em defesa da vida, em defesa dos elementos sagrados aqui da nossa região, elementos que são importantes para nossa sobrevivência cultural. E a mulher indígena chama para si essa responsabilidade. Uma vez que também é responsável pela educação das crianças, ela vai ter que repassar esses conhecimentos, incentivar, educar a criança indígena também para, digamos, esse ativismo, essa defesa da vida. Como a mulher indígena está no dia a dia com a criança, então é dela a responsabilidade do repasse da língua e da cultura. Então, não é uma luta diferente, é uma luta coletiva sempre.
Com certeza a mulher indígena hoje tem discutido muito mais as questões política, social e ideológica do que algum tempo atrás. Hoje, a mulher indígena está dando entrevista, falando em grandes encontros sobre a conjuntura política nacional que estamos vivendo atualmente. Também as nossas jovens indígenas, hoje, estão nas faculdades, estão se formando na área do direito, na área da saúde. A tendência é cada vez aumentar a participação da mulher indígena dentro das discussões políticas e sociais, com certeza.
Ano passado, o movimento indígena trouxe como uma das estratégias de resistência a participação dentro do pleito. A mulher indígena, ainda que em número pequeno, representava essa demanda dentro do movimento. Como exemplo, nós vamos temos a Joênia Wapichana, que hoje é uma referência para nós mulheres indígenas. A marcha de resistência das mulheres indígenas foi um marco: o primeiro momento em que muitas lideranças femininas indígenas estiveram juntas para discutir esse cenário atual. Não apenas discutir, mas se colocar como sujeito dentro desse processo, se colocar como agente transformador dessa realidade que nós estamos enfrentando. Aí, a gente tinha a presença de lideranças mais antigas, lideranças que estão dentro das universidades, as jovens que estão crescendo também com essas ideologias, com essa filosofia de vida.
Sempre houve essa violência, sempre! Principalmente no período de ocupação do Brasil. Foi uma violência marcante, uma violência de estupro contra as mulheres indígenas. Hoje, a violência ainda é muito forte, estrutural. Primeiro por que a mulher indígena, em relação às outras mulheres, vai ter uma escolaridade menor, menos acesso à informação. De fato, ela é um grupo de maior risco em relação a violência contra a mulher. Muitas vezes essa violência vai se dar de diversas formas, como no trabalho, violência de quem vai receber pouco, porque a ela são destinados apenas aqueles trabalhos como os de dona de casa, de limpar a casa, de empregada doméstica. Há também a violência por sua condição indígena, que ainda é vista por muitos de forma bastante exótica. Mas é uma violência que se dá desde fora da comunidade. Lógico que dentro das nossas comunidades a gente vai encontrar muitas mulheres indígenas que sofrem também violência em casa. Às vezes se casa com um não indígena que não compreende a cultura dela, então, essa violência também vai se dar dessa forma.
Existem diversas formas de violência contra mulher indígena: a física, a psicológica, a sexual… Ainda está muito presente hoje na cultura brasileira. A mulher indígena está pouco aberta para falar sobre essa questão. É muito delicada essa questão da violência sexual. Hoje nós temos um grande problema no Brasil, principalmente entre nós indígenas, que é a questão do alcoolismo. Muito dessa violência que se dá vem através do companheiro quando está muito bêbado e pratica esse tipo de violência. Tem também a violência psicológica. Por um longo período foi colocado na cabeça não só da mulher indígena, mas de todos os indígenas, a questão da inferioridade, de ser menos do que as outras classes. Essa é também uma violência que a gente precisa superar.
As mulheres indígenas têm se organizado hoje. Por exemplo, aqui nós temos na Amazônia a Makira-Êta, que é uma rede de mulheres indígenas, assim como a União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), que traz como pauta principal e é uma forma de organização e de aprofundar, de discutir essa questão de do papel da mulher indígena e os desafios que devem ser superados.
Assim como a urbanização e o desenvolvimento das cidades foram substituindo os costumes que já existiam nessas localidades, o entendimento jurídico da nossa legislação parcialmente favorece o enfraquecimento cultural das nossas populações indígenas, como, por exemplo, a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Embora tenha como objetivo respeitar e reconhecer a cultura tradicional das populações indígenas, não é uma política que aconteça lá na ponta, não é uma política que valoriza as questões culturais. Então, você vê que hoje as mulheres têm um acompanhamento com obstetra. A parteira vai ficando esquecida dentro desse processo. O tratamento com a medicina tradicional vai sendo substituído pelo medicamento da medicina ocidental. É preciso que haja um entendimento sobre o que de fato é a saúde, uma saúde diferenciada destinada as populações indígenas. Aqui na cidade de Manaus, por um outro lado, como um processo de resistência, como um processo de identidade, as lideranças indígenas têm mantido muito sua cultura na cidade. É uma forma de identificação dela e da sua cultura. Os aparelhos de Estado da saúde não estão preparados para essa diversidade que nós temos no estado do Amazonas. Assim, fica meio que complicado, mas a população indígena que está na cidade tem discutido muito a respeito disso. Uma das estratégias de reafirmação identitária tem sido a valorização da parteira.
A mulher indígena se prepara desde cedo para a criação. Desde da primeira menstruação ela vai ter alguns cuidados para que possa ter um parto saudável. Cada mulher indígena tem sua forma de parto. Nesse processo, é importante a figura da pajé e, em algumas culturas, do pajé como um acompanhamento espiritual que vai fazendo a abertura para que essa criança chegue de forma saudável. Isso tem estado muito presente dentro da cidade.
A comunidade e o papel do pai também são muito importantes durante esse período. A mulher indígena, quando tem o bebê, tem o resguardo na sua alimentação, assim como pai também precisa ter. Por que, se não observar essas questões, pode trazer complicações para criança. As comunidades indígenas têm buscado muito trabalhar essa questão, manter isso vivo. Em último, quando é diagnosticado um parto mais complicado, aí sim vem a utilização da alta complexidade na saúde.
Quando o indígena nasce, já nasce com todo o acompanhamento. Desde a gestação, quando a mulher está gerando a vida, tem o acompanhamento da parteira, que vê se está tudo bem com a criança. Tem o acompanhamento do pajé, que vai tratar da questão espiritual, das doenças espirituais, que vai fazer o tratamento. Quando a criança nasce, ela tem o acompanhamento da comunidade, da família, do pai, que passa pelo mesmo processo de resguardo para que a criança não venha a sofrer nenhum tipo de consequência depois. A gente sabe que a criança, enquanto está no ventre, se o pai ou a mãe teimar em fazer alguma coisa, depois a criança vai sentir as consequências. O pai e a mãe procuram tomar cuidado em relação a isso.
Em todas as culturas indígenas temos os rituais de preparação para as fases da vida. O meu povo, Sateré-Mawé, tem o ritual da tucandeira, para o qual a criança desde que nasce começa a ser preparada pela mãe. O ritual da tucandeira é o ritual da passagem da criança para a fase adulta, para que seja um bom pai, um bom caçador, uma boa liderança. Essas lições são passadas ao longo da nossa vida, assim como a valorização da velhice. Quanto mais velho você vai se tornando, mais respeitado você vai sendo na cultura indígena, por conta do grande conhecimento que o ancião traz. Isso porque os anciãos são como uma biblioteca viva dos conhecimentos tradicionais de cada povo. Outras culturas têm muito que aprender com essa cultura das populações indígenas. A nossa vida é sempre acompanhada e preparada para as outras fases, para que possamos ser pessoas melhores, lideranças melhores, que vão tratar, cuidar e lutar pelos direitos coletivos das comunidades, das populações. Penso que é isso que a outra cultura precisa e tenha a aprender com as populações indígenas. Nossa cultura amazônica é a do cuidado com a vida em todas as dimensões, tanto pessoa quanto natureza. Para as populações indígenas, não há uma divisão. Não se pode discutir população e depois se discutir a questão do meio ambiente. Não se discute as duas coisas separadamente porque elas fazem parte de uma só. Os elementos sagrados, terra, água, fazem parte da vida, fazem parte do ser indígena.