O sol bate no Rio Tocantins, mais um dia se inicia. Vejo diversos “rabudinhos” cruzarem a Baia do Capim, repletos de “paneiros” de Açaí, Mapará, Filhote, Sarda, Dourada, Pescada Branca, Tucunaré, farinha, buriti, cupuaçu, bacaba, galinha caipira, carne de porco, mel tudo para ser vendido ou trocado na sede do Município de Abaetetuba no Estado do Pará.
No meio do Rio Tocantins, entramos em um dos braços de rio, seguimos pelo Rio Caratateua, depois retornamos para o furo do Rio Capim. Neste momento seu Francisco aponta para o outro lado do rio e me avisa que o Porto da Cargill será construído ali. Para minha surpresa, uma família passa em uma pequena embarcação e puxa do rio vários “Matapis” repletos de camarão. Seguimos para o salão comunitário, vamos conversar um pouco sobre o assunto que está incomodando todas e todos: “QUEREM MATAR O NOSSO RIO”.
Inicia a reunião, começo a explicar o que será o Porto da Cargill. Consiste na construção de um Terminal de Uso Privativo que transportará por ano mais de 60 milhões de toneladas de grãos. O porto será instalado em uma área localizada na ilha do Capim, que teria sido comprada por uma empresa internacional, contudo as ilhas constituem-se em cerca de 20 Projetos de Assentamentos Extrativistas, os chamados PAEs, criados durante os governos do Partido dos Trabalhadores.
Mais de 7 mil famílias serão afetadas, entre pescadores artesanais, extrativistas e quilombolas, estes compõem quatro comunidades. A Fundação Cultural Palmares que atua com os povos quilombolas já iniciou o diálogo para que as comunidades informem o que desejam que seja feito como mitigação. As comunidades quilombolas e demais populações tradicionais não querem o porto.
“As ilhas e os rios nutrem a vida e o caminho de cada homem, mulher, criança e jovem que as habita.”
Essas comunidades estão por mais de um século naquelas localidades, vivem dos rios, sua existência convive com botos, tracajás, saci, peixes, cobras, curupira, matinta-pereira, caipora, mãe d’água, mapinguari, São Francisco, Nossa Senhora de Guadalupe, Divino Espírito Santo, São José, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição dentre outros seres e encantados que convivem de forma harmônica, habitando a vida de cada uma dessas comunidades, os rios dão o tom e o tempo da existência de cada um dos habitantes de cada uma das ilhas.
As ilhas e os rios nutrem a vida e o caminho de cada homem, mulher, criança e jovem que as habita. Entre as colheitas, o tempo da pesca, o ir para a escola, a retirada do açaí com a peconha, depois bater o açaí e tomar na hora do almoço com o mapará e com o camarão fresquinho. Essa é a realidade deste povo, esse é o desenvolvimento que eles defendem, porque quando o campo não planta ou pesca, a cidade não janta!
Hoje nas ilhas de Abaetetuba vemos jovens formados pelo PRONERA, professores e professoras de Geografia, advogadas e advogados, engenheiros agrônomos, dentre tantas outras profissões.
Mas querem instalar um porto, querem acabar com nossa cultura tradicional. Tanta coisa já fizemos. Fizemos o Grito das águas, estamos construindo nossos protocolos de Consulta Prévia para que respeitem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. A comunidade extrativista do Pirocaba foi a primeira a realizar seu protocolo de consulta prévia, contaram sua realidade e disseram como querem ser consultadas, como podem ser consultadas, quem faz a consulta, e quando a consulta deve ser feita.
As empresas acham que elas podem fazer a consulta prévia, que a consulta é a mesma coisa que a audiência pública do licenciamento ambiental e que a consulta é apenas um ato formal, apenas uma reunião. Segundo o protocolo de consulta da Comunidade do Pirocaba o Estado deve encaminhar para a Comissão da Comunidade responsável pelo procedimento de Consulta um ofício com todos os documentos, mapas, estudos que fazem parte do projeto. A consulta deve ocorrer toda vez que um ato administrativo ou uma lei puder afetar o modo de vida tradicional de uma comunidade quilombola, indígena ou extrativista.
O povo das ilhas já ocupou a Câmara dos Vereadores, e descobriu que a Prefeitura autorizou a obra sem a realização da consulta Prévia. A Câmara de Vereadores de Abaetetuba instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, para apurar como se deu o processo de anuência para a instalação do Porto da Cargill na Ilha do Capim. A Defensoria Pública do Estado do Pará através do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Estratégicas, já ingressou com a Ação Judicial nº.: 0800766-13.2018.8.14.0070, que tramita junto à 1ª Vara Cível e Empresarial de Abaetetuba em 27 de março de 2018, que aguarda julgamento do pedido de tutela de urgência, para que o juízo determine ao governo do Estado que proceda com a realização do processo de consulta.
Mas a Empresa Cargill não quer fazer a coisa certa, ela juntamente com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente resolveu fazer reuniões nas comunidades dizendo que era consulta prévia. Mas esqueceram de perguntar se as comunidades queriam que fosse feita desta forma, elas querem que se respeite seu protocolo de consulta, pois a Comunidade Quilombola do Bom Remédio já tem seu protocolo de consulta, e a comunidade de Guajará de Beja também está fazendo o seu.
“Para onde essas pessoas vão depois que o Porto da Cargill se instalar?”
Dia 27 de junho, mais uma batalha pela legalidade e pela vida dos rios de Abaetetuba será travada. Eles querem que respeitem suas culturas, sua sociedade, seu modo de vida, eles só possuem aqueles rios, como ficarão essas famílias, como elas irão viver, onde irão trabalhar, já que o porto somente irá gerar 100 postos de empregos. A profissão delas é a terra, são as águas. Tenho certeza que o meu leitor se questionou o significado de diversos nomes que são do dia a dia deste povo, e a Convenção 169 da OIT garante que este conhecimento deve ser preservado e deve ser levado em conta durante todo o processo de “desenvolvimento”. O importante é que a consulta deve ocorrer previamente à todo o procedimento de licenciamento ambiental. Todavia, como dito alhures dia 27 de junho na sede do Município de Abaetetuba ocorrerá mais uma audiência do procedimento de licenciamento ambiental.
A Defensoria Pública do Estado através do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Estratégicas emitiu uma recomendação para que a Secretaria de Meio Ambiente realize a Consulta Prévia, de acordo com os protocolos das comunidades tradicionais. Neste mesmo sentido a Deputada Estadual Marinor Brito realizou um pronunciamento no último dia 19 de junho no Plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Pará solicitando a interrupção do licenciamento ambiental e a realização da Consulta Prévia as comunidades afetadas, além de ter encaminhado uma moção neste mesmo sentido.
Querem matar o nosso rio! Lembro de uma história que li quando era jovem. Na história o povo dos mares se unia contra o povo da terra. O povo da terra queria destruir os mares, pois jogavam lixo nos rios e mares, poluíam os rios e mares com seus grandes navios, destruíam os corais e os habitats de peixes, tubarões, crustáceos, moluscos e o outros habitantes dos mares e rios. Agora querem matar as populações que moram ao redor do Rio Capim e do Rio Tocantins, me pergunto para onde essas pessoas vão depois que o Porto da Cargill se instalar?