Juventude: crises e lutas no mundo contemporâneo
Por Vanessa Araújo Correia[1]
Introdução
A juventude é uma categoria social que se formou nas sociedades modernas, associada à escolarização e à industrialização[2]. Os muitos conteúdos e significados que esse momento da vida foi ganhando ao longo do tempo constituem a juventude como uma condição peculiar que se diferencia das demais categorias sociais. Dentre as especificidades dessa etapa do ciclo da vida podemos destacar os novos papéis e posições sociais assumidos pelos jovens, na medida em que se ampliam suas relações sociais. Papéis que vão ser atribuídos, mas também construídos, e posições que vão ser disputadas no processo de transição para a vida adulta, marcado potencialmente pela passagem da dependência à autonomia.
Os jovens, como iniciantes, buscam integrar-se numa estrutura social já “definida” – em que o poder e as riquezas (as melhores posições) estão em posse dos adultos. Por isso, não estão “completamente enredados no status quo da ordem social”[3]. Essa tensão entre integração e não integração lhes atribui um potencial de renovação social, impactando a sociedade com o questionamento à sua ordem normativa e incorporando novidades, que marcam um legado geracional. Por outro lado, por essa condição de iniciantes, numa sociedade excludente, eles estão à margem, enfrentando as dificuldades de inserção social e expondo as contradições mais latentes na sociedade, como o desemprego, a desigualdade social e a violência.
O Brasil tem uma população de 51 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos, 21% do total. A taxa de homicídio entre a população essa população é de 51.9 mortes por 100 mil habitantes; entre os adultos essa proporção é de 18,1 por 100 mil[4]; apesar do aumento considerável nas últimas duas décadas, apenas 18,7% de jovens entre 18 e 24 anos acessaram o ensino superior, e somente 14% permaneceram matriculados[5]. Considerando a mesma faixa de idade, 25,9% estão desempregados (a taxa geral da população é de 12%)[6]; ainda em relação aos jovens de 18 a 24 anos, 27,4% não trabalham nem estudam (os chamados nem nem)[7]. Evidente que esses dados não tratam igualmente as juventudes. São os pobres, os negros e moradores das regiões periféricas ou rurais do país, os mais vulneráveis. “Em cada tempo e lugar, fatores históricos, estruturais e conjunturais determinam as vulnerabilidades e as potencialidades das juventudes”[8]. Tanto nos aspectos culturais quanto nos socioeconômicos, a situação juvenil revela um retrato de nosso tempo. Compreender a sociedade em que vivemos implica necessariamente em conhecer suas juventudes; ao mesmo tempo em que conhecê-las nos dá a oportunidade de traçar um diagnóstico social profundo e preciso.
Jovens e a crise de futuro
O desmantelamento dos Estados de Bem-Estar social e o avanço das políticas neoliberais em praticamente todo o mundo ocidental impõem, de modo particular às novas gerações, um estado permanente de crise e austeridade, materializado de forma dramática em reformas previdenciárias e trabalhistas em curso no Brasil e em outros países.
O desemprego é, para os jovens de hoje, uma situação iminente, com a qual irão se deparar repetidas vezes em sua trajetória profissional. Além disso, a flexibilização de direitos trabalhistas, a terceirização (em vias de ser expandida no país), a precarização do trabalho, a rotatividade, os baixos salários e a exigência de altos níveis de capacitação são algumas das características resultantes das transformações no mundo do trabalho e que afetam os jovens em sua tentativa de integração social e emancipação.
A juventude contemporânea vive um paradoxo: apesar de desfrutar de vantagens educacionais se comparada às gerações anteriores, vê o valor de seus diplomas despencarem no mercado, isto é, observa-se um tempo de capacitação escolar cada vez mais dilatado, enquanto que há menores chances de disputar um posto de trabalho e ganhos condizentes com sua formação. Desse modo, a passagem da dependência para integração plena na sociedade, elemento central da transição para a vida adulta[9], torna-se cada vez mais nebulosa. Os jovens até experimentam autonomia em alguns aspectos da vida, mas seguem num estado prolongado de semidepedência em relação à família, na medida em que as condições para uma emancipação completa não se efetivam.
Assim, na “sociedade do risco” [10], os/as jovens contemporâneos vivem num tempo em que as garantias de futuro se dissolvem e os projetos têm de se voltar cada vez mais para o imediato[11]. Essa ausência de estabilidade confronta-nos com os ideais basilares da modernidade iluminista de autonomia humana, de controle sobre um futuro aberto e múltiplo de possibilidades. A ideia de que a autonomia do indivíduo o conduziria a um futuro indiscutivelmente melhor ruiu-se. “Se o futuro que a primeira modernidade observava era o futuro aberto, o futuro da modernidade contemporânea é o futuro indeterminado e indeterminável, governado pelo risco”[12].
Como resultado, a juventude tem experimentado um mal-estar profundo com um modelo social que a rejeita, a deixa vulnerável e lhe tira garantias de um futuro com direitos. Os caminhos da política institucional soam como morosos e pouco eficientes aos jovens, de modo que sua confiança nos governantes é decrescente. Cada vez mais eles demonstram desapego e descrença em relação às instituições incapazes de lhes conferir garantias. Desencantados com uma promessa que não se cumpre, os/as jovens têm sido os principais protagonistas das revoltas populares ao redor do mundo, de modo que, ainda que desacreditem das instituições, não rejeitam à política.
As lutas juvenis
Ao se observar algumas das principais ou mais visíveis mobilizações populares na contemporaneidade, encontramos a juventude em evidência. Ela tem estado presente em diferentes tipos de agrupamentos: coletivos, movimentos, comunidades virtuais etc. As estratégias e métodos de atuação são vários: atos, marchas, twitadas, ocupações de prédios públicos, apresentações culturais, escrachos etc. As diferentes mobilizações encabeçadas por jovens possuem algumas características similares. São grupos não institucionalizados; que se autodenominam apartidários; utilizam as redes sociais como estratégia de convocação; não possuem lideranças ou estruturas hierárquicas; se pautam pela horizontalidade; conciliam demandas pragmáticas e imediatas com insatisfações difusas e direcionadas ao sistema político e econômico como um todo.
O grande marco histórico da participação juvenil, no Brasil, é a década de 1960/1970, com destaque para o movimento estudantil, que se engajou na luta pela abertura democrática. A atuação da juventude dessa época foi idealizada como o grau máximo de envolvimento juvenil na transformação da sociedade e, ainda hoje, é vista com nostalgia pelos atores políticos que se queixam das gerações posteriores como apolítica. Os grupos e movimentos que surgiram depois dessa época, no Brasil, tiveram pouca credibilidade nos espaços tradicionais de participação política, como partidos e sindicatos[13]. Filhos de outro tempo histórico que não o do regime militar, ao longo da década de 1990 e, mais precisamente, na virada do milênio, os chamados novos movimentos juvenis ou novas formas de participação política desafiaram as instituições políticas tradicionais e povoaram o país de diferentes formas de engajamento sociopolítico. Eles produziram novas formas de participar, por meio da cultura, do engajamento socioambiental, das múltiplas identidades e pertencimentos religiosos; reinventaram táticas conhecidas, como manifestação de rua e ocupações, dando a elas novo sentido político. Sua atuação nas redes sociais também resignificam a noção de esfera pública e pautam o debate político com frequência.
Depois de junho de 2013 e, mais recentemente, das ocupações das escolas, confirma-se o que alguns pesquisadores do tema[14] indicavam: os/as jovens não rejeitam a política, mas querem reinventá-la. Ao extrapolarem a política institucional, os/as jovens ativistas disputam o sentido de ação política e criam uma nova gramática social, que ainda estamos por decifrar. Em 2013, por exemplo, o Movimento Passe Livre (MPL) insistia: a decisão sobre o preço da tarifa do transporte público deve ser política e não técnica. Não é que ignorem a técnica, mas rejeitam a escala de prioridades das instituições e lideranças políticas.
Esses/as ativistas autônomos, isto é, não ligados a instituições ou movimentos tradicionais, recebem muitas críticas. Dizem que lhes faltam estratégias e definições programáticas que apontem para a finalidade futura da ação. O desafio talvez seja compreender essa perspectiva dentro da alteração da própria noção de futuro e projeto, como mencionado anteriormente. Se os projetos e desejos, na sociedade governada pelo risco, voltam-se mais para o presente, a ação política também não estaria nessa mesma direção? Ao mesmo tempo, alterar o presente, não seria justamente a condição de possibilidade de projetar e alterar o futuro?.
Num cenário polarizado como o que vivemos, muitas forças e interesses estão em disputa. Os/as jovens não devem ser compreendidos como uma massa homogênea, isenta das desigualdades e conflitos sociais. É preciso considerar que eles/as também se engajam em movimentos conservadores, autoritários e contraditórios. A Pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, de 2003,[15] já demonstrava que o apreço pela democracia vem crescendo década a década, mas é geralmente resultado de uma sofisticação política, associada à escolarização. De antemão, não podemos supor que jovens sejam naturalmente progressistas, mas que são mais dispostos/as a romper com a ordem social vigente, com um potencial revitalizador da sociedade, já que não estão ainda enredados/as pelo status quo.
Programa MAGIS Brasil e o acompanhamento aos/às jovens
Acompanhar a juventude nesse cenário desafia-nos a lutar ao seu lado por um futuro digno. Conhecer a realidade juvenil nos possibilita também compreender a sociedade em que vivemos e suas contradições mais latentes. Do mesmo modo, caminhar com os jovens e desejar-lhes uma vida plena exige compromissos concretos com a garantia de seu presente e futuro com dignidade. Hoje, impor-se contra as reformas legislativas em curso que comprometem diversos direitos sociais, contra a violência e encarceramento em massa de jovens, contra o empobrecimento e a exploração, essas são maneiras concretas de defender sua vida. Do mesmo modo, é preciso dar-lhes esperança e fortalecer seu desejo de sonhar com o magis.
Nesse sentido, o Programa MAGIS Brasil, apresenta-se como uma ação apostólica da Província dos Jesuítas do Brasil junto aos jovens. Trata-se de uma articulação em rede das várias ações no meio dos jovens, para oferecer-lhes experiências, formação e acompanhamento, em vista do serviço da fé e da promoção da justiça. O Programa busca atentar para as fronteiras e apelos da missão com os jovens. São eles quem mais sofrem com a violência, com o desemprego, com o empobrecimento. Ao mesmo tempo, esse período da vida, marcado pela busca da autonomia, da construção de identidade e da definição de projetos de vida, é um período existencial e espiritualmente desafiador. De modo que o mundo juvenil, com sua diversidade e seus desafios, é, atualmente, uma das fronteiras preferenciais de missão, na qual a Companhia de Jesus é chamada a construir “pontes de compreensão e de diálogo” (CG 35).
Diante da realidade juvenil refletida aqui, seria possível destacar ao menos três frentes de atuação importantes para o Programa assumir transversalmente na articulação das diversas ações junto à juventude. Uma delas é a pesquisa, porque é improvável aproximar-se, formar e caminhar com quem não conhecemos. É fundamental que o Programa MAGIS reúna esforços em torno da pesquisa sobre a condição e situação juvenil no mundo atual. Nesse sentido, hoje, o Centro MAGIS Anchietanum, em nome da Rede Brasileira de Centros e Institutos de Juventude, numa parceria com a Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, promove a Especialização em Juventude no Mundo contemporâneo, formando pesquisadores de juventude e abrindo caminhos para o conhecimento e reconhecimento dos/as jovens.
Outra frente basal é a incidência social nas políticas públicas em favor dos/as jovens. O acompanhamento sistemático aos espaços de proposição e formulação de políticas públicas, como os Conselhos de Direitos, é uma tarefa necessária para o dia-a-dia do Programa, por meio de seus Centros, Casas e Espaços. É preciso fazer frente aos retrocessos e retiradas de direitos que estão em curso em nosso país e garantir, com a juventude, o direito a um presente e um futuro mais dignos, com direitos.
Por fim, e muito importante, está o acompanhamento de jovens na construção de seus projetos de vida. É necessário, inclusive, discutir o sentido do que se entende por projeto de vida. Não se trata de fortalecer uma ideia de projeto como critério de conferir maior utilidade ou eficiência à vida, tendo como fim apenas estratégias e resultados. Essa é uma tentação que pode fazer muito sentido e ir ao encontro das demandas da sociedade governada pelo risco. Porém, ajudar os/as jovens a ter esperança implica em apresentar-lhes uma ideia de projeto que consista num processo que tem como critério a descoberta de si, de seus desejos, de suas contradições, das condições de possibilidade, e tenha como finalidade a busca contínua de sentido e horizonte para a existência. Projeto de vida deve ser proposto como um esforço permanente de buscar e encontrar o melhor que podemos ser para nós e para o mundo, num impulso rumo ao magis[16].
[1] Coordenadora de Projetos, no Centro MAGIS Anchietanum, coordenadora da Especialização em Juventude no Mundo Contemporâneo; graduada em comunicação social (Unisa), especialista em juventude (FAJE) e mestre em Estudos Culturais (USP).
[2] Para saber mais sobre o surgimento da juventude como categoria social associada à escolarização, ver Ariès, Philippe. A história social da criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora LTC. 1981.
[3] Ver Mannheim, Karl. O problema da juventude na sociedade moderna, in. BRITTO, Sulamita. Sociologia da juventude. V.1. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, pp. 69-94.
[4] Dados do Mapa da Violência dos Municípios, de 2016.
[5] Dados do IPEA, de 2014.
[6] Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de janeiro de 2017.
[7] Dados da Síntese de Indicadores Sociais 2016.
[8] NOVAES, Regina. Juventude e sociedade: jogos de espelhos, sentimentos, percepções e demandas por direitos e políticas públicas. Revista Sociologia Especial: ciência e vida, São Paulo, 2007.
[9] Sobre os elementos da transição para a vida adulta, ver CANESCHI, Liciana. A saída da Casa dos pais e a transição para a vida adulta: trajetórias de jovens no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 2015.
[10] Sobre sociedade governada pelo risco, ver LECCARDI, Carmen. Por um novo significado do futuro mudança social, jovens e tempo. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2. pp. 35-57.
[11] Idem.
[12] LECCARDI, 2015, p. 43.
[13] Para saber sobre aparecimento de novos movimentos juvenis, Ver ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo. Scritta. 1994.
[14] Ver mais em ALMEIDA, Renato. Juventude e Participação: novas formas de atuação juvenil na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Departamento de Ciências Sociais. 2009.
[15] Sobre a Pesquisa Perfil Juventude, Ver ABRAMO, Helena (org). Retratos da Juventude Brasileira. São Paulo. Fundação Perseu Abramo. 2004.
[16] Magis, termo em latim, quer dizer o mais, o maior, o melhor, e é um tema que caracteriza profundamente a conversão de Santo Inácio de Loyola, fundador da Ordem religiosa dos padres e irmãos jesuítas.